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A privatização da água e os movimentos de resistência

Francisco Pontes de Miranda Ferreira
Um intenso processo de privatização do setor de saneamento iniciou-se na década de 1980 e foi consolidado na Conferência Mundial da Água (1992) em Dublin, na Irlanda, por pressão do Banco Mundial. Nesta reunião água foi definida como “bem econômico”. Hoje algumas corporações dominam o mercado mundial da água: Suez, RWE Thames, Veola, Nestle, Coca Cola, Bechtel. Essas empresas muitas vezes adquirem outros nomes nas regiões que atuam. O domínio pela água é uma das principais formas de poder. No entanto, as lutas de resistência são marcantes em todo o planeta (Fonte: documentário “Blue Gold” do diretor Sam Bozzo, baseado no livro homônimo de Maude Barlow e Tony Clarke, 2008).
Nos Estados Unidos, no Estado de Winsconsin, a Nestlé/Perrier foi expulsa pelo movimento popular. Em Paris, o contrato de concessão à empresa particular não foi renovado, em Cochabamba na Bolívia a Veola também foi expulsa do país. As baixas foram também expressivas em que a líder camponesa da Coréia, Lee Kyong e a documentarista inglesa, Joan Thorpe Root, no Quênia, em defesa do lago Naivajha, foram assassinados. Maude Barlow, autora do livro “Blue Gold”, afirmou que os problemas relacionados com a água só terão soluções com o questionamento do sistema político e econômico mundial. O líder boliviano Oscar Olivera destacou que os movimentos sociais precisam se fortalecer e abraçar essa luta. Uma das preocupações maiores são as guerras que já existem e vão se acentuar na disputa pela água. Um dos locais mais cobiçados é o aquífero Guarani na América do Sul em que a família Bush adquiriu enormes propriedades no Paraguai. A líder ambientalista e cientista, Vandana Shiva, ressaltou as disputas violentas na Índia, principalmente na bacia do rio Kaleri (Fonte: documentário “Blue Gold” do diretor Sam Bozzo, baseado no livro homônimo de Maude Barlow e Tony Clarke, 2008). Os autores do livro “Blue Gold” citam o exemplo do Uruguai onde uma emenda constitucional proíbe a privatização da água.
Água e resistência
Vandana Shiva faz parte do Movimento Chipko. Ela conta que quando era pequena e filha de um guarda-parque no Himalaia, costumava beber e banhar-se nos rios de água azul das montanhas. Quando terminou seu doutorado retornou ao Himalaia e se deparou com outra realidade. As florestas tinham sido derrubadas e substituídas por plantações e o rio que frequentava tinha sido transformado num riachinho. Foi nesse momento que Vandana se juntou ao movimento formado por mulheres camponesas do Himalaia que durante toda a década de 1970 realizou manifestações contra a derrubada das árvores. Vandana defende que as florestas permitem tanto o abastecimento de água quanto o controle das enchentes que atingem o rio Ganges que nasce no Himalaia. Ela afirma que “as monoculturas importantes para a indústria, principalmente os pinheiros, estão promovendo as enchentes e as secas”. Em 1980 Vandana foi para Dehra Dun – onde nasceu e encontrou outro abuso com a água. Uma mineração gigantesca havia sido instalada. As mulheres camponesas da região acusavam o desaparecimento da água após a chegada da mineração. As mulheres do campo iniciaram então um Satyagraha que significa “luta pela verdade”, uma forma de ação direta por justiça. A luta iniciou-se em 1983 com o fechamento da estrada de acesso à mina. As camponesas permaneceram sentadas na estada por três anos. O trabalho comum delas era cuidar do gado e levar água e lenha para casa. Organizaram-se para resistir. Foram atacadas pela polícia e uma delas ficou gravemente ferida. Uma resistente de 80 anos disse que sempre sobreviveram dos recursos naturais e que a força delas vem do Sakati – energia original e do Prakriti – criatividade original ou natureza. Vandana critica os engenheiros e suas obras. Segundo ela, o povo criou sistemas tradicionais de irrigação que nunca abalaram a natureza. Explicou que todos os povos da India surgiram no entorno da água tanto que Ab significa água e Abadi povoado. “Quando os homens pensam que são criadores, só pensam no que criam e perdem a habilidade de verem o que destruíram”, afirma Vandana. Ela conta que a construção de barragens, além de impactar os recursos hídricos, remove as pessoas. Enfatizou que na Índia onde uma barragem está sendo erguida, acontece também um movimento de resistência. Ela descreve vários casos de barragens que se tornaram inúteis ou pela falta de água para abastecê-las ou pelo assoreamento causado pela erosão. Fatos que são consequência do desmatamento. Vandana descreveu também os impactos provocados pelos altos investimentos na exportação de camarões que está destruindo os manguezais do litoral da Índia. Movimentos como o Tamil Nadu se formaram no litoral e utilizam as mesmas táticas do Chipko. As mulheres deitam na frente das escavadeiras para impedir a construção dos tanques. Na região durante 40 séculos a população conviveu harmoniosamente com a água e em um mês essa herança foi destruída, informou Vandana. Ela critica a entrada da lógica do mercado e dos investimentos internacionais apoiados pelo Banco Mundial.
Temos que colocar no mercado global para investidores estrangeiros comprar. Isso é o que acontece na India em que empresas podem agora comprar 50 mil hectares para plantar uvas para fabricar champanhe e tomates para o ketchup do Pizza Hut (SHIVA, 1996).
Além disso, essas monoculturas de exportação abusam com o uso de produtos químicos, denunciou.
Judith Mbula Bahemuka (1996) do Quênia ressalta a importância dos mitos e dos símbolos na defesa da água. Para a maioria dos povos da África a água é muito sagrada. Ela conta a história da construção de uma barragem no Quênia. Os mais velhos da tribo avisaram que o local era sagrado. O governo argumentou que locais sagrados não existem mais. A barragem foi construída e logo em seguida foram dois anos de estiagem. Como enfatizou Judith, “todos saíram perdendo”. Ela lamenta que a mitologia está sumindo e ganha cada vez mais relevância o discurso científico e a favor dos grandes empreendimentos. Adriano Martins (1996) fala do rio São Francisco que nasce na região chuvosa de Minas Gerais e cruza o semiárido do Nordeste brasileiro. Na bacia do São Francisco vivem cerca de 10% da população do Brasil. Ele aponta os mesmos problemas de que falou Vandana e Judith: desmatamento, monoculturas de eucalipto e de grãos, construção de barragens e projetos agroindustriais. Adriano participou de uma manifestação que foi uma caminhada da nascente ao mar. Acompanharam ele um padre, uma religiosa franciscana e um trabalhador rural. No caminho mobilizaram as organizações da sociedade civil, estudantes e educadores em defesa do rio. Ele afirmou que a população sempre teve uma aproximação com a natureza e considera o rio sagrado. Lembrou que a primeira imagem que o ser humano teve de si mesmo foi através da água. Foi quando refletiu sobre sua formação e seus limites.
Waldemar Boff (1996) conta que a região de Petrópolis na Região Serrana do Estado do Rio possui água em abundância devido às florestas ainda bem preservadas na parte alta e que no verão as chuvas torrenciais causam enormes desastres com desabamentos, enchentes e muitas vezes mortes. No entanto, muitos pobres são obrigados a carregar água até suas casas nos topos dos morros. A cidade é um paraíso para alguns e miserável para muitos. No inverno o problema é a seca e os pobres são os primeiros a sentir a falta de água e os incêndios florestais são bem comuns. Waldemar defende como solução o fortalecimento das organizações populares. O povo deseja apenas um cantinho limpo e saudável para viver com dignidade, afirma Waldemar. Trata-se de um modelo de utopia bem simples e viável. Ele lembra as mensagens de São Francisco de Assis que chama os elementos da natureza de irmã e irmão como a irmã água.
No ano de 2000, em Cochabamba na Bolívia o governo, pressionado pelo Banco Mundial, privatizou o serviço de abastecimento de água potável. A população, formada na maioria por indígenas, reagiu em rebelião e o governo reagiu utilizando-se da força policial, resultando na morte de um jovem que comoveu o país e o mundo. O líder do movimento, Oscar Olivera, declarou que a globalização não acabou com a mobilização e a revolta dos povos e que aprenderam com seus avós a lutar.
Em março de 2003 aconteceu o Terceiro Fórum Mundial da Água em Quioto no Japão em que a pauta principal foi a privatização do setor. Na mesa e na plenária estavam representantes dos governos, os movimentos sociais e o diretor administrativo do Banco Mundial, Peter Woicke. De um lado, portanto, os representantes do poder econômico que desejam transformar água em mercadoria e do outro os movimentos sociais que exigem que a água é um bem comum. Oscar Olivera foi o principal locutor dos movimentos sociais e disse que, assim como aconteceu em Cochabamba, sempre haverá resistência contra a privatização da água (Milton Santos – por uma outra globalização, filme de Sílvio Tendler de 2006). Os recursos hídricos representam um dos maiores focos de conflitos e de luta dos movimentos sociais.
Referências
BAHEMUKA, J.M. “Water – Myths, Symbols and rituals in Sub-Saharian Africa”; BOFF, W. “a Political look at the Natural Resources from the standpoint of the peoples in the South” e SHIVA, V. “Our vanishing waters: daughters of the Earth, Rise!” in Verdagsatelier, A. S. Wasser: Okologishe, Politische und Mythologishe Positionen, Paris-New York: Grtaz-Esztergom, 1996.
Francisco Pontes de Miranda Ferreira é Jornalista (PUC Rio) e Geógrafo (UFRJ) com mestrado em Sociologia e Antropologia (UFRJ), pós graduação em História da Arte (PUC Rio), pós-graduação em Desenvolvimento Territorial da UERJ Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do conselho editorial do Jornal Poiésis.