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A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO D’ÁGUA

Atualizado: 12 de set. de 2021



Geraldo Chacon


APRESENTAÇÃO


A partir da década de 50, Jorge Amado em suas narrativas deixou de enfatizar a temática político-social, entrando de forma decidida na crônica de costumes. A crônica social cedeu lugar a uma nova perspectiva de narrativa mais colorida, mais divertida.

Dentro dessa linha de narrativas que formam a Segunda fase da obra de Jorge Amado, vamos encontrar A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água, que é uma das duas novelas que compõem o livro VELHOS MARINHEIROS. Aí o fantástico e a realidade coexistem na criação artística.

Trata-se de uma novela curta, caracterizada pelo humor. Publicada pela primeira vez em 1959, foi traduzida para vários idiomas: inglês, alemão, árabe, italiano, francês e russo.


ALGUNS CAPÍTULOS CONDENSADO


Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há.

(Frase derradeira de Quincas, segundo Quitéria)


Capítulo I


Até hoje permanece certa confusão em torno a morte de Quincas Berro D’água. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas... (p.15)


Nesse capítulo o autor disserta sobre as duas versões a respeito da morte da personagem central: a primeira, sustentada pela família que se mantém intransigente na versão da tranquila morte matinal, sem testemunhas... a outra, ocorrida posteriormente com um espaço aproximado de “vinte horas”, já na agonia da noite, quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram os mistérios na orla do cais da Bahia. Neste caso, nosso defunto estaria acompanhado por um grupo de amigos da vida boêmia, pessoas detestadas pela família do finado.


Ainda no mesmo capítulo, o narrador faz uma digressão sobre o termo “morte” na história da vida de Quincas: outrora ele havia levado a vida de um homem de conduta social correta e impecável, isto é, um bom marido, um bom pai, cidadão de respeito de nome Joaquim Soares da Cunha. De repente jogou tudo para o alto e caiu na vida desregrada, vestindo-se com roupas sujas e velhas, frequentando prostíbulos e bebendo cachaça com os vagabundos. Sendo assim, a primeira morte já teria ocorrido em vida, ou seja, não a morte física, mas a morte moral, ocorrida anos antes do mergulho no mar. Depois disso, ele se tornou o desgosto da família, ao ponto de não pronunciarem seu nome na frente das crianças.


Capítulo II


Os patifes que contavam, pelas ruas e ladeiras, em frente ao mercado e na Água dos Meninos, os momentos finais de Quincas desrespeitavam a memória do morto.


Comentário: A família não gostava dos comentários populares e repentes[1] que se faziam sobre Quincas, achavam que aquilo era um desrespeito para com a memória do falecido. Aqui a narrativa vai assumindo um caráter de regressão, quase como um flashback, isto é, o narrador vai encadeando os fatos em ordem inversa à cronológica, até chegar no momento em que a negra encontra o corpo inerte no quarto ...naquela manhã (...) um santeiro[2] (...) chegou aflito (...) e comunicou à filha Vanda e ao genro Leonardo estar Quincas definitivamente morto em sua pocilga[3] miserável (p.21). Então, o mensageiro, um velho magro conta os acontecimentos: diz que uma negra, vendedora de acarajé[4] tinha um importante assunto a tratar com Quincas naquela manhã, porque precisava de certas ervas difíceis de encontrar para obrigações do candomblé.[5]. Chegando à morada do Quincas, a mulher o encontrou morto, sorrindo ironicamente, deitado, com o dedão do pé direito saltando por um buraco da meia e... “frio”. Desceu as escadas correndo, espalhou a notícia (p.23).


A partir daí a narrativa retorna ao momento e ao lugar em que o casal recebeu a notícia da morte. Leonardo vai à Repartição[6] assinar o ponto, Vanda comenta que a tia Marocas e o tio Eduardo devem ser avisados. O santeiro tinha indagado os motivos que levaram o Quincas a levar aquela vida, traição ou desgosto... ao que Leonardo retrucou: Dona Otacília, minha sogra, era uma santa mulher (p.24). Instantes depois o santeiro dá uma olhadela no retrato de Dona Otacília e faz um comentário: Não tem cara de quem engana marido... Em compensação, devia ser um osso duro de roer... Santa mulher? Não acredito... (p.25).


VEJAMOS AGORA DOIS CAPÍTULOS FINAIS

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Capítulo XI


Pelo jeito, aquela ia ser noite memorável, inesquecível. Quincas (...) estava num dos seus melhores dias. Um entusiasmo incomum apossara-se da turma, sentiam-se donos daquela noite fantástica, quando a lua cheia envolvia o mistério da cidade da Bahia. Na ladeira do Pelourinho casais escondiam-se nos portais centenários, gatos miavam nos telhados, violões gemiam serenatas. Era uma noite de encantamento, toques de atabaques ressoavam ao longe, o Pelourinho parecia um cenário fantasmagórico. (...) Tudo naquela noite era diferente. (...) Sentaram-se nos degraus da igreja do Largo (...) (p.93)


Os fiéis companheiros avisavam os demais conhecidos que Quincas estava vivo e aquele era o dia do aniversário dele.


O grupo de amigos e Quincas se uniram a um outro grupo de conhecidos para irem comer peixada no saveiro[7] de Mestre Manuel, dentre eles estava a Quitéria, ainda de luto. Ela mostrava-se aliviada em ver o Quincas. Conversa com ele, reclama dizendo que quase morreu com a notícia da morte dele e reclama que agora descobre que ele está na farra. Xinga-o de desgraçado.


Enquanto se encaminhavam ao lugar desejado, passavam por diversos lugares onde viam “manifestações variadas” de alegria por ver o Quincas. Alguns ofereciam pinga de graça ao grupo de foliões. Por onde passavam, ouviam-se gritos chamando Quincas. Passam pela casa de Quitéria para beber e lá Quincas tira uma “soneca”. Quitéria comunica aos demais que o desgraçado dormiu. Deixaram-no descansar um pouco, mas como estavam atrasados, despertaram o preguiçoso e seguiram em frente. Agora iam apressados. Pararam no bar do velho amigo Cazuza, e lá acabam tendo uma desavença com um grupo de maconheiros. A briga foi feia, o bar ficou todo quebrado, mas os amigos do Quincas acabaram vitoriosos, apesar de algum olho roxo, roupas rasgadas.


Quincas fica no chão, deitado, dormindo ou desmaiado, com a cabeça machucada.


Os companheiros comemoravam o aniversário do Quincas, ainda que nem soubessem bem quando fosse esse dia. Finalmente chegaram ao lugar desejado, ainda tinha arraia pra todo mundo. O grupo entrou no barco e foi comer a moqueca de arraia mar adentro.

Todos se divertiam e comiam. Quitéria e Quincas ficaram vendo o mar. Era noite de lua cheia, mas um temporal interrompeu a festa, muito vento e o mar ficou bravo. O barco começou a balançar e as pessoas se seguravam nas cordas, de repente cinco raios sucederam-se no céu. Barulho de fim de mundo.


De repente, viram Quincas atirar-se ao mar e ouviram sua frase derradeira. Em seguida as águas ficaram calmas, mas Quincas ficara na tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria vontade. (p.102)



Capítulo XII

No meio da confusão

Ouviu-se Quincas dizer:

“– Me enterro como entender

Na hora que resolver.

Podem guardar seu caixão

Pra melhor ocasião

Não vou deixar me prender

Em cova rasa no chão.”

E foi impossível saber

O resto da sua oração.

(Rio, abril de 1959)


Comentário: A funerária não aceitou o caixão de volta, e este ficou na casa do tio Eduardo esperando por outro defunto. Vanda aproveitou as velas. Esses últimos versos em redondilhas maiores[8] mostram a imprecisão como os fatos são relatados. Note-se o caráter popular da linguagem oral, pois a estrutura e a linguagem usadas, remetem-nos aos poetas repentistas e violeiros.


SÍNTESE DO ENREDO


A novela relata num tom lírico e satírico, a história de Joaquim Soares da Cunha. Tendo sido um funcionário público exemplar, honesto pai de família.


Certo dia, porém, cansado de suportar uma esposa com um gênio terrível, resolve deixar a vida de homem respeitável e respeitado, abandona o emprego, o lar com esposa e filha, para cair nas noites boêmias de Salvador.


A partir de então, passa a conviver com vagabundos e prostitutas, e transforma-se no bêbado mais admirado da cidade, vulgarmente conhecido como Quincas Berro D’água. Certo dia, Quincas foi encontrado morto por uma negra, e sua morte foi lamentada por todos os malandros e amigos de farra.


A família, na tentativa de recuperar sua “dignidade”, quer dizer, a sua postura de homem da sociedade, tenta enterrá-lo segundo as normas burguesas, mas não conseguem. Isso não acontece, porque os familiares, cansados, deixam o local em que estavam fazendo o velório, e os companheiros de farra acabam levando o defunto para uma última noitada através das ruas de Salvador da Bahia.


Depois de uma peregrinação em que acontece de tudo: brigas e bebedeiras, fatos reais e surreais, lances de fantástico mistério. Depois dessa aventura, o herói morre pela segunda vez, atirando-se ao mar, como um velho marinheiro, livre das prisões sociais. Por isso o título apresenta duas vezes a palavra morte. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua.

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Os Velhos Marinheiros (ed.1961) usado para citação.

[1][1] Repente são versos improvisados feitos em redondilhas e cantados ao som do violão. [2] Devoto, beato, fabricante ou vendedor de imagem de santos. [3] O termo pocilga está se referindo ao quarto imundo onde dormia a personagem. [4][4] Comida típica da Bahia feita com massa de feijão frita em bolinhos no azeite de dendê, recheado com molho e camarão. [5] Ritual religioso de origem africana, regido pelo Pai de Santo. [6] O autor colocou a palavra com maiúscula para referir-se à Repartição pública onde o protagonista trabalhava. [7] Tipo de embarcação a vela. [8] Versos de sete sílabas.

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