Jornal Poiésis
A MORTE BANALIZANDO-SE NA VIDA EM TEMPO DE PANDEMIA

Gerson Valle
Uma nova sensação ante a ideia da morte, trazida pelo imenso número de gente por ela atingido, tocoume a ponto de querer teorizá-la. Não o farei, porque a transformei em poema, e poesia se transmite por imagens. Acordei de madrugada e o poema se formando, verso a verso, que eu repetia temendo esquecêlos. Acabou me tomando todo, e me levantando para a sala registrei-o em papel (meu computador fica no escritório, no andar de cima, longe na madrugada das insônias). Mas, por que diabo os versos me chegaram em francês?, qualquer leitor perguntará. A mim pareceu normal na hora. À noite eu assistira alguns capítulos de uma série francesa da Netflix, “Marseille”, de Dan Frank, com Gérard Dépardieu. Recomendo-a a todas as pessoas amigas, pois trata da realidade política em que vivemos, mostrando a cidade de Marselha com problemas próximos aos daqui, uma grande população pobre onde aparecem gangues de traficantes, grupos de imigrantes árabes, africanos, uma extrema direita preconceituosa racista e de um neoliberalismo excludente, demagogicamente traçando a política de fake news para angariar votos e agir da forma dos bandidos, mentindo como se estivesse protegendo a tal da “moral e bons costumes”... A realização é tão corajosa e bem descritiva que a série não emplacou o terceiro período, a Netflix argumentando que as críticas estavam desfavoráveis. Pode-se imaginar quantos interesses foram atingidos e os reais motivos para sua interrupção! Mas, não estou colocando Pilatos no Credo. A série apareceu aqui para justificar de o poema ter-me chegado em francês. A sonoridade da língua que tanto me inspira, estava em meus ouvidos. Não é a primeira vez. Volta e meia sinto os sons franceses como música e escrevo nele alguns versos. Desde os tempos que estudei na França, fazendo lá duas pós-graduações (um DEA equivalente a mestrado em Direito da Paz e Desenvolvimento, e um “altos estudos” em Política Internacional, que me valeram lecionar em faculdades do Rio na década de 70). Há algum tempo que não tenho falado francês, e o seriado parece me ter aguçado a predisposição para a língua. Sem mais papo furado, aí vai o poema (e não é que é um soneto?):
LA PEUR
Gerson Valle
Dans la nuit on passe
autour du cemitière de la ville
et on constate: les morts
n’étaient pas faits pour mourir
La vie est encore ici
aux coeurs des fantômes tristes,
malgré la peur des esprits
de rencontrer l’autre à l’ombre
Chacun reste seul au monde.
La victoire et les vainqueurs
se dispersent dans les sombres.
C’est notre raison profonde
continuer dans la vie
d’âme perdu dans la nuit.
Gerson Valle é poeta e escritor, membro da Academia Petropolitana de Letras, autor de diversos livros, entre os quais “Dentro da mata densa” (Ibis Libris, 2013) e “Os souvenirs da prostituta” (Catedral das Letras, 2006). Facebook: https://www.facebook.com/gerson.pereiravalle