- jornalpoiesis
A ILUSTRE CASA DE RAMIRES
Atualizado: 21 de jun. de 2021

Condensado por Geraldo Chacon
Não é difícil encontrarmos alguém rindo alto, durante a leitura de contos ou de romances do Eça de Queiroz. Seu romance A Ilustre Casa de Ramires foi publicado inicialmente na “Revista Moderna”, fundada em Paris pelo próprio Eça e por um brasileiro. Nessa obra o leitor não vai encontrar mais aquela postura inconformista e revolucionária de quem levantava a bandeira para destruir, em luta constante, a burguesia e o romance romântico. Porém, encontrará um escritor no momento de sua maior perfeição estilística. Podemos dizer que as suas páginas expressam o virtuosismo da forma e o apogeu de seu estilo.
CAPÍTULOS CONDENSADOS
Capítulo I
Gonçalo Mendes Ramires, último descendente masculino de uma antiga família fidalga portuguesa, que teria surgido no século X, vive apuros econômicos. É solteiro e sonha entrar para a vida política.
Enquanto esse desejo não se torna realidade, Gonçalo resolve divulgar seu nome através da literatura, o que lhe proporcionará fama, que será útil à carreira pública. Por isso, vem a calhar o convite de seu amigo José Lúcio Castanheiro para que ele escreva uma novela histórica, A Torre de D. Ramires, destinada ao primeiro número da revista fundada por Castanheiro: ANAIS DE LITERATURA E DE HISTÓRIA.
José Lúcio entusiasma o fidalgo da torre com essas palavras: “...Trabalha agora no verão... Para portugueses, menino, o verão é o tempo das belas fortunas e dos rijos feitos. No verão nasce Nuno Álvares no Bonjardim! No verão se vence em Aljubarrota! No verão chega o Gama à Índia! ... E no verão vai o nosso Gonçalo escrever uma novelazinha sublime!... De resto os ANAIS só aparecem em dezembro, caracteristicamente no primeiro de dezembro. E você em três meses ressuscita um mundo. Sério, Gonçalo Mendes!... É um dever, um santo dever, sobretudo para os novos, colaborar nos ANAIS. Portugal, menino, morre por falta de sentimento nacional! Nós estamos imundamente morrendo do mal de não ser portugueses!” (p.7)
Mune-se o fidalgo de vários livros que devem auxiliá-lo na sua pesquisa, como “... rijos volumes da HISTÓRIA GENEALÓGICA, todo o VOCABULÁRIO de Blateau, tomos soltos do PANORAMA, e (...) as obras de Walter Scott...” (p.10), mas a obra que lhe economiza muito trabalho é o poemeto épico O Castelo de Santa Ireneia, escrito pelo seu tio Duarte, irmão de sua mãe, entre 1845 e 1850, e publicado no Bardo, semanário de Guimarães.
“Na realidade só lhe restava transpor as fórmulas fluidas do romantismo de 1846, para a sua prosa tersa e máscula (como confessava o Castanheiro), de ótima cor arcaica, lembrando O Bobo[1].
Gonçalo retira da estante as obras de Herculano, relê o poema do tio Duarte e dá início ao seu trabalho. A história de seu antepassado, Tructesindo Ramires, tem como pano de fundo um cenário outonal, por isso Gonçalo resolve transpor para o inverno áspero por ser “mais congênere com a rudeza feudal dos seus avós”. Essa decisão não foi levada adiante, pois incentivado mais pela paisagem que se desenrolava perante seus olhos naquele momento do que pelos livros ou pela sua fantasia, o fidalgo “determinou por fim aproveitar as sensações de calor, luar e arvoredos, que lhe fornecia a aldeia – para levantar, logo à entrada de sua novela, o negro e imenso paço de Santa Ireneia, no silêncio de uma noite de agosto, sob o resplendor da lua cheia”. (p.10)
Estava entusiasmado com o trabalho, já tendo preenchido duas folhas, quando foi interrompido por uma arruaça provocada pelo seu caseiro Manuel Relho, que arrendava sua quinta por oitocentos mil réis. O caseiro sempre bebia e praticava desordem. Naquele momento exato, provocava gritos indignados da cozinheira Rosa. E antes que Gonçalo fizesse qualquer coisa, duas pedradas acertaram a varanda venerável da livraria onde trabalhava o fidalgo. Este pensa no revólver, mas se lembra de que Bento, seu criado, o havia retirado para fazer limpeza.
“Então, atarantado, correu ao quarto, que fechou à chave, empurrando contra a porta a cômoda com tão desesperada ansiedade, que frascos de cristal, um cofre de tartaruga, até um crucifixo, tombaram e se partiram.” (p.11)
Mesmo com a retirada de Manuel Relho, permaneceu Gonçalo em seu retiro por toda aquela noite. No dia seguinte convocou o regedor que expulsou Relho e o homem, cujo arrendamento findava em outubro, foi despedido da quinta com a mulher, a arca e o catre.
Logo apareceu um pretendente, José Casco, lavrador dos Bravais, que se retirou entristecido porque Gonçalo resolveu aumentar a renda para novecentos e cinquenta mil réis. Voltou o lavrador várias vezes e, após algumas tentativas frustradas de conseguir preço mais baixo, acabou aceitando com um suspiro o preço estabelecido.
“À maneira antiga, o fidalgo apertou a mão ao lavrador que entrou na cozinha a enxugar um largo copo de vinho, esponjando na testa, nas cordoveias rijas do pescoço, o suor ansiado que o alagava. ”(p.11)
Talvez entrevado por essas preocupações materiais, Gonçalo tentou dar prosseguimento à sua narrativa, mas nada conseguiu naquele dia.
Capítulo XI
Desde junho Gonçalo tinha trabalhado na novela. Finalmente, após quatro meses, a novela fica pronta. Reinicia com ênfase a sua campanha para deputado. Por onde passa, encontra carinho e admiração. Tudo que tinha feito produzia efeito: a atenção com o filho do Casco; o cuidado samaritano com o lavrador Solha ferido na perna; a lição dada ao valentão de Narcejas; enfim, cada gesto seu é louvado por todos que se dispõem a dar-lhe os votos. Num dos passeios de campanha, encontra o outro candidato, o Doutor Júlio, que comenta o sucesso da campanha de Gonçalo, gracejando que, talvez, até ele mesmo vote no fidalgo.
Numa visita à sua irmã, Gonçalo é recebido pelo Barrolo que está muito enigmático. Logo, com a chegada de André Cavaleiro, Gonçalo fica sabendo que planejaram, e el-rei já aceitou, fazê-lo Marquês de Treixedo. Gonçalo não gosta, pois acredita que tudo é obra do Cavaleiro, como um agradecimento a ele por ter franqueado a casa da irmã. Ironicamente recusa, dizendo que ele sim, por ser fidalgo de linhagem mais antiga, é que tem o direito de dar ao rei o título de Marquês de Roncão, pois o rei tem uma quinta de nome “Roncão” ao pé de Beja.
A eleição se realiza e toda a região se rejubila com fogos e festas, votando em massa no fidalgo. Da torre, iluminada por Bento e Rosa, Gonçalo vê os foguetes e ouve sons distantes de tambores.
“Mas na sombra e silêncio, por vezes além, para o lado dos Bravais, lampejavam foguetes remotos. Um clarão amarelado e fumarento, caminhando mais longe, entestando para a finta, era decerto um rancho com archotes festivos. Na alta igreja da Veleda tremeluzia uma iluminação vaga, rala. Outras luzes, incertas através do arvoredo, riscavam o velho arco do mosteiro, em Santa Maria de Craquede. Da terra escura subia, por vezes, um errante som de tambores. E lumes, fachos, abafados rufos, eram dez freguesias celebrando amoravelmente o fidalgo da torre, que lhes recebia o amor e o preito no eirado da sua torre, envolto em silêncio e sombra”. (p.213/4)
Em dezembro, é publicada a novela com grande sucesso. Em janeiro, vai o fidalgo para Lisboa, destacando-se na sociedade e aparecendo sempre nas páginas dos jornais. Em fins de abril, todos de Oliveira a Santa Ireneia assustam-se com a notícia da partida de Gonçalo para a África. Arranjara a concessão de um prazo na Zambézia. Em julho embarca.
SÍNTESE DO ENREDO
Gonçalo Ramires vive apuros financeiros, sonha entrar na política e inicia o processo de redação de uma novela histórica sobre seu antepassado Tructesindo.
Tructesindo se põe contra o rei por respeito à palavra dada ao seu suserano D. Sancho. É atacado por Lopo Baião, o Bastardo, favorável ao rei. Baião mata Lourenço Ramires, filho de Tructesindo. O velho fidalgo persegue, prende e mata o Bastardo afundando-o no “Poço das Bichas”, onde tem o sangue chupado pelas terríveis sanguessugas.
Com a morte do deputado Sanches Lucena, Gonçalo, a conselho de seu amigo Gouveia, sai candidato à vaga, tendo que se reconciliar com André Cavaleiro, governador civil, pelo partido histórico.
Cavaleiro que tinha sido namorado de sua irmã Gracinha, agora casada com José Barrolo, volta a frequentar a casa dela e a seduz.
Gonçalo termina de escrever a novela e é eleito deputado. Não satisfeito com isso, consegue um “prazo” na África e tenta a aventura da colonização, com resultados positivos. Gonçalo volta a Portugal e é recebido em Lisboa com muita honra. Na sua casa e sua região, parentes e amigos preparam-se para recebê-lo. Seu amigo Gouveia compara-o a Portugal.
ANTOLOGIA
Leiam esses maravilhosos fragmentos que escolhemos e temos certeza de que vão querer ler os originais do maior escritor do Realismo em Portugal.
Texto 1
“– Oh! Rapazes! Santo Deus! Aí vêm as Lousadas!
João Gouveia saltou do canapé, como num perigo, reabotoando arrebatadamente a sobrecasaca; Gonçalo, atarantado, esbarrou com o Titó e o Barrolo que recuavam, no terror a serem apercebidos através dos vidros largos; até Padre Soeiro, prudente, abandonou o seu recanto, onde corria os óculos pela Gazeta do porto. E todos, dentre a fenda das cortinas, como soldados na fresta de uma cidadela, espreitavam o largo, que o sol das quatro dourava, por sobre os telhados musgosos da cordoaria. Do lado da Rua Pegas, as duas Lousadas, muito sacudidas, ambas com manteletes curtos de seda preta e vidrilhos, ambas com guarda-sóis de xadrezinho desbotado, avançavam, estirando pelo largo empedrado duas sombras agudas.
As duas manas Lousadas! Secas, escuras e gárrulas como cigarras, desde longos anos, em Oliveira, eram elas as esquadrinhadoras de todas as vidas, as espalhadoras de todas as maledicências, as tecedeiras de todas as intrigas. E na desditosa cidade não existia nódoa, pecha, bule rachado, coração dorido, algibeira arrasada, janela entreaberta, poeira a um canto, vulto a uma esquina, chapéu estreado na missa, bolo encomendado nas Matildes, que os seus quatro olhinhos furantes de azeviche sujo não descortinassem − e que a sua língua solta, entre os dentes ralos, não comentasse com maledicência estridente! Delas surdiam as cartas anônimas que infestavam o Distrito. (...) Mas quem ousaria rechaçar as duas manas Lousadas? Eram filhas do decrépito e venerando General Lousada; eram parentas do bispo; eram poderosas na poderosa confraria do Senhor dos Passos da Penha. E depois de uma castidade tão rígida, tão antiga e tão ressequida, e por elas tão espaventosamente alardeada – que o Marcolino do Independente as alcunhara de Duas Mil Virgens.
– Não vêm para cá! – trovejou o Titó, com imenso alívio.
Com efeito no meio do largo, rente à grade que circunda o antigo relógio de sol, as duas manas, paradas, erguiam o bico escuro, farejando e espiando a Igrejinha de São Mateus, onde o sino lançara um repique de batizado.
– Oh, c’os diabos, que é para cá!
As Lousadas, decididas, investiam contra o portão dos Cunhais! Então foi um grande pânico! As gordas pernas do Barrolo, fugindo, abalaram, quase derrubaram sobre os contadores, os potes bojudos da Índia. Gonçalo, bradava que se escondessem no pomar. Desconcertado, o Gouveia rebuscava com desespero o seu chapéu de coco. Só o Titó, que as abominava e a quem elas chamavam o Polifemo, retirou com serenidade, abrigando o Padre Soeiro sob seu braço forte. E já o bando espavorido se arremessava sobre o reposteiro − quando Gracinha apareceu, com um fresco vestido de sedinha cor de morango, sorrindo, pasmada, para o tropel que rolava:
– Que foi? Que foi?...
Um clamor abafado envolveu a doce senhora ameaçada:
– As Lousadas!
– Oh!
Fugidiamente, o Titó e João Gouveia apertaram a mão que ela lhes abandonou, esmorecida. A sineta do portão tilintara, temerosa! E a fila acavalada, onde Padre Soeiro rebolava a reboque, enfiou para a livraria que o Barrolo aferrolhou, gritando ainda a Gracinha, com uma inspiração:
– Esconda as sangrias!
Pobre Gracinha! Atarantada, sem tempo de chamar o escudeiro, carregou ela para uma banqueta do corredor, num esforço desesperado, a pesada salva − com que as Lousadas se a descortinassem, edificariam por sobre a cidade, e mais alta que a torre de São Mateus, uma história pavorosa de “vinhaça e bebedeira”. Depois, ofegando, relanceou no espelho o penteado. E direita como numa arena, com a temeridade simples e risonha dos antigos Ramires, esperou a arremetida das manas terríveis.” (pp. 63/65)
Texto 2
“Uma névoa turvou os olhos esgazeados do fidalgo. E de repente, num inconsciente arranque, como levado por uma furiosa rajada de orgulho e força, que se desencadeava do fundo do seu ser, gritou, atirou a fina égua num galão terrível! E nem compreendeu! O cajado sarilhara! A égua empinava, numa cabeçada furiosa! E Gonçalo entreviu a mão no homem, escura, imensa, que empolgava a camba do freio.
Então, erguido nos estribos, por sobre a imensa mão, despediu uma vergastada do chicote silvante de cavalo-marinho, colhendo o latagão na face, de lado, num galope tão vivo da aresta aguda, que a orelha pendeu, despegada, num borbotar de sangue. Com um berro o homem recuou, cambaleando. Gonçalo galgou sobre ele, noutro arremesso, com outra fulgurante chicotada, que o apanhou pela boca, lhe rasgou a boca, decerto lhe espedaçou os dentes, o atirou, urrando, para o chão. As patas da égua machucavam as grossas coxas estendidas, – e, debruçado, Gonçalo ainda vergastou, cortou desesperadamente face, pescoço, até que o corpo jazeu mole e como morto, com jorros de sangue escuro ensopando a camisa.
Um tiro atroou o terreiro! E Gonçalo, com um salto no selim, avistou o rapazote moreno ainda com a espingarda erguida, a fumegar, mas já hesitando aterrado.
– Ah, cão!
Lançou a égua, com o chicote alto; o rapaz, espavorido, corria lentamente através do terreiro, para saltar o valado, escapar para as várzeas ceifadas!
– Ah cão, ah cão – berrava Gonçalo.
Estonteado, o rapaz tropeçara numa viga solta. Mas já se endireitava, largava, quando o fidalgo o alcançou com uma cutilada do chicote no pescoço, logo alagado de sangue. Estendendo as mãos incertas, ainda cambaleou, abateu, estalou contra a aresta de um pilar, a cabeça mais sangue jorrou. Então Gonçalo, a arquejar, deteve a égua. Ambos os homens jaziam imóveis! Santo Deus ! Mortos? De ambos corria o sangue sobre a terra seca. O fidalgo da torre sentia uma alegria brutal. Mas um grito espantado soou do lado do quinteiro.
– Ai que mataram o meu rapaz.
Era um velho que corria da cancela, numa carreira agachada, rente com a sebe, para aporta da casa. Tão certeiramente o fidalgo arremessou a égua, para o deter – que o velho esbarrou contra o peitoril, que arfava coberto de suor e de espuma.” (pp.177/8)
QUEIRÓS, Eça de − A Cidade e as Serras , SP, 1973, Editora Brasiliense, 2ª edição. (obra utilizada para citação)
[1] Romance histórico famoso do escritor português Alexandre Herculano.