Jornal Poiésis
A gente trabalha pra poder consertar as coisas

Marcelo J. Fernandes
Hoje cedo, com forte enxaqueca, passei o rol do dia, pensando no tanto que havia pra consertar: um dente; os óculos do filho; a guitarra; o ar do carro;o notebook antigo; o meu fusca; o violão do filho; a tv do quarto, um relógio de estimação etc.
Lembrei-me,subitamente, de uma das maiores lições que aprendi, dada por um balconista humilde, numa casa de ferragens, logo que vim morar em Petrópolis, há quase vinte anos.
Sempre indo comprar alguma coisa pra reparar um item de casa, reclamei a recorrência com ele, que me disse a frase lapidar, à queima-roupa: "a gente trabalha pra isso, doutor, pra consertar as coisas." Juntei os parafusos, as buchas, paguei a conta e até hoje reflito sobre aquele ensinamento.
Desdobro-o e o estendo sobre a existência comum. De certa forma, passamos a vida consertando as coisas, as pessoas, os animais, os objetos, tudo.
Reparamos palavras, gestos, atitudes, olhares, ímpetos, mágoas, erros, alguns pênaltis.
Quando objetivamente recorremos ao médico, ao dentista, ou ao sapateiro, à costureira, à manicure, ao eletricista.
Ou se nos permitimos uma boa comida, um belo espetáculo, uma linda canção ou uma viagem inesquecível, isso não é consertar a alma?
Se o ofício nos cabe, também não consertamos os outros seres?
Então nós trabalhamos, passamos o tempo trocando o ócio pela possibilidade de reparar as coisas, incluindo a nós mesmos...
Isso é a vida, em resumo.
Membro da Academia Petropolitana de Letras, Marcelo é professor, doutor em Letras Vernáculas pela UFRJ.