Jornal Poiésis
A emergência da Complexidade e da Transdisciplinaridade
Atualizado: 17 de ago. de 2020

Francisco Pontes de Miranda Ferreira
Num copo de vinho do Porto, há partículas que se formaram nos primeiros segundos do universo, há também partículas da evolução do mundo vegetal e da técnica humana que criou a fermentação do vinho. No vinho do Porto temos partes do cosmo e da região do Douro (ALMEIDA, 2004).
A complexidade deve ser compreendida como um problema e um desafio e não uma resposta. Até o início do século XX o grande objetivo da ciência foi revelar as leis simples que regem os fenômenos, a ordem que os determina e as verdades. Para isso utilizaram de quatro meios (MORIN, 2004):
1. Princípio da ordem: contém tudo que é estável, constante, regular, cíclico. O mundo visto como uma máquina determinista. Este pensamento foi incapaz de dar conta do novo e da criação;
2. Princípio da separação: separação das matérias e separação do objeto e do sujeito. Especialização e organização das disciplinas. Este pensamento foi incapaz de perceber que várias teorias surgiram na interdisciplinaridade.
3. Princípio da redução: o conhecimento das unidades elementares permite conhecer os conjuntos das quais elas são os componentes;
4. Princípio da verdade da lógica clássica: dedutivo-indutivo-identitária. Atribuía um valor de verdade quase absoluta à indução e à dedução, eliminando-se qualquer contradição. O aparecimento de uma contradição era considerado um sinal de erro.
O desafio da complexidade surge do fato de que todos estes princípios foram abalados e questionados. A ordem perfeita da física clássica foi impactada pelas novas descobertas da termodinâmica (séculos XIX e XX) de onde surgiu a ideia de irreversibilidade e de degradação da energia ligada ao calor e sua agitação molecular. Os movimentos das moléculas se tornaram imprevistos e cientistas, diante destas descobertas, questionavam se o próprio mundo não caminharia na direção de uma entropia máxima, de uma desordem. A desordem começou a fazer parte de todos os estudos sobre a origem do universo e nesta desordem apareceram alguns princípios de ordem envolvendo núcleos, átomos, galáxias. O mundo, ao mesmo tempo, se organizava e se desintegrava. A cooperação entre ordem e desordem passou a ser considerada, fato que não era admitido pela física clássica. Este jogo entre ordem e desordem é chamado de dialógica em que os contraditórios são complementares. O acaso começou a fazer parte da evolução e no lugar da separação apareceu a ideia de que “o todo é algo mais do que a soma das partes”. Existem qualidades e propriedades no todo que não estão presentes nas partes separadas.
O século XX viveu duas grandes revoluções científicas (MORIN, 2004):
1. A irrupção da desordem com a física quântica, levando-nos a tratarmos com desordem e a incerteza. A certeza absoluta foi epistemologicamente abalada e a própria cientificidade dos postulados foi questionada;
2. A emergência das ciências polidisiciplinares – este novo movimento epistemológico ainda não se consolidou.
Destas revoluções surgiu o sentido de complexidade em que as diversas interações nos levam a muitas incertezas. Trata-se do fim do saber absoluto e total e o princípio da lógica dedutivo-identitária deixou de ser absoluta,que precisamos agora transgredir. A transgressão apareceu com a própria microfísica quando descobrimos que os dados de uma observação não se fundamentam numa racionalidade: a partícula em certas circunstâncias experimentais se comporta como um corpúsculo isolável e em outros como uma onda contínua. Este tipo de pensamento serve também para as observações da relação sociedade-indivíduo e para várias outras. Devemos, portanto, propor a ideia dialógica em que o poder de nossa lógica nunca é absoluto e para pensar precisamos transgredi-la. O pensamento clássico torna-se insuficiente para lidarmos com a complexidade com suas compartimentações e contextualizações dos conhecimentos. Hoje sabemos que somos parte do cosmos, trazemos em nós vários mundos e enfrentamos a complexidade.
A descoberta da complexidade na segunda metade do século XX provocou uma nova interpretação de toda a tradição científica e da epistemologia moderna. A ciência moderna
criou o etnocentrismo exacerbado que até pouco tempo predominou nas sociedades ocidentais. O etnocentrismo antecede o nascimento da ciência moderna e teve origem no ano de 1492 com o processo de planetarização da Europa. Foi um grande choque cognitivo na cultura europeia o encontro com povos, línguas, animais, plantas e paisagens inéditas. No final do milênio, sabemos que a América já tinha sido ocupada há milhares de anos por levas de asiáticos e provavelmente por vikings, abalando o sentido de descoberta. Esta descontinuidade nos traz uma ausência de raízes e antecedentes definidos e significam a emergência da pluralidade e da não-linearidade. Os conquistadores europeus se colocaram no poder de julgar sobre a maturidade das culturas e dos modos de vida diferentes em que o “outro” poderia ser destruído. Assim os povos americanos foram dominados e destruídos de sua própria história. Foi uma extinção em massa de culturas na direção de uma homogeneização. Neste início de milênio, imperam incertezas e controvérsias e resgatamos as inúmeras diversidades que ainda permanecem no planeta. As conquistas tecnológicas e econômicas dos últimos séculos foram pagas por perdas irreparáveis de recursos humanos, culturas, ecossistemas, espécies, saberes e culturas. Agora exigimos uma perspectiva complexa e integradora em que a experiência humana é um emaranhado de destruição e construção em que existe também uma tensão constante em direção à criação de novos equilíbrios. Hoje presenciamos a emergência de uma civilização planetária e um dos fatores importantes tem sido a análise dos patrimônios genéticos e os percursos das várias populações, desde a suposta origem africana. Ficam evidentes as controvérsias das questões de parentesco e das classificações linguísticas e surgem comprovações de uma monogênese da linguagem e de um antepassado comum. Outro fator interessante é a concomitância histórica das grandes descontinuidades evolutivas em várias partes do mundo. Ao mesmo tempo, perguntamos o motivo de algumas civilizações terem produzido impérios e centros urbanos e outras terem permanecidos nos princípios da caça e da coleta. Podemos também delinear uma história planetária semelhante de muitos mitos e das espiritualidades. Identificamos ligações culturais entre a Índia e Europa e temos sequencias de diversidades e unidades. As populações em geral desenvolveram fluxos e raramente permaneceram no isolamento (CERUTI, 2004).
Para alcançarmos metapatamares de compreensão do mundo temos que nos deslocar do conforto e caminharmos na direção das incertezas, dos riscos, da curiosidade, da complexidade. Precisamos de uma nova organização do pensamento pautada na transdisciplinaridade. O fato é que enfrentamos hoje uma insuficiência das explicações científicas e o modelo cartesiano de pensar começa a se esgotar completamente. Além disso, nos deparamos com a ameaça do esgotamento dos recursos energéticos, do modelo patriarcal de sociedade e de uma crise sem precedentes na área cultural. Interrogamos o próprio pressuposto do homem de se achar superior e com o direito de promover uma relação perversa e suicida de dominação da natureza e do planeta. Trata-se da crise do paradigma do Ocidente. Para isso, necessitamos da superação da Disciplinaridade fechada e da especialização em que os cientistas precisam ser menos arrogantes e respeitarem mais os saberes tradicionais, no caminho de uma solidariedade universal. Temos que construir formas de religar o homem ao mundo, o sujeito ao objeto, a natureza à cultura, a ciência à arte e à filosofia. O fato é que a complexidade está presente em tudo (material ou não). Ainda temos o princípio hologramático em que a parte está no todo, que está na parte e que o todo é maior ou menor que a soma das partes (ALMEIDA, 2004).
O grão se transformou em árvore que se tornou um móvel que acabou no fogo e se transformou em cinzas. Lenhador, marceneiro, vendedor só participaram de segmentos desta história. A complexidade é um novo ingrediente da história da cultura humana que está presente em tudo. É um tecer junto que relaciona cultura, cognição e complexidade, onde campos de tensão são simultaneamente antagônicos, contraditórios e complementares. Foi um equivoco histórico a compartimentalização disciplinar na ciência e hoje a complexidade invade todos os campos do saber. O campo do conhecimento humano
precisa ser ampliado através do diálogo e da criatividade, na direção de um novo paradigma e de um devir coletivo. Os sistemas fechados não existem mais e no lugar temos sistemas abertos e auto-organizados, onde o acaso e a desordem criativa são elementos relevantes(ALMEIDA, 2004).
A própria vida cotidiana é impregnada de complexidade. Homem, sociedade, meio ambiente, ideias interagem numa metamorfose contínua, aberta e incerta. Enfatizamos, cada vez mais, os princípios de Heráclito. A dialógica diz respeito às trocas, simbioses e retroações entre as entidades físico-químico-psíquicas presentes no homem e na sociedade. No princípio dialógico não há oposição entre ordem e desordem, natureza e cultura. O antagonismo funciona simultaneamente com a complementariedade em que causa e efeito são negados – um efeito torna-se causa novamente e sucessivamente.
Referências
ALMEIDA, M. C. Complexidade, do casulo à borboletain CARVALHO, E. A. e MENDONÇA, T. Ensaios de Complexidade. Porto Alegre: Editora Sullina, 2004.
CERUTI, M. Unidade e diversidade da espécie humana; unidade e diversidade da cultura humana in CARVALHO, E. A. e MENDONÇA, T. Ensaios de Complexidade. Porto Alegre: Editora Sullina, 2004.
MORIN, E. Os desafios da complexidade in CARVALHO, E. A. e MENDONÇA, T. Ensaios de
Complexidade. Porto Alegre: Editora Sullina, 2004.
Francisco Pontes de Miranda Ferreira é Jornalista (PUC Rio) e Geógrafo (UFRJ) com mestrado em Sociologia e Antropologia (UFRJ), pós-graduação em História da Arte (PUC Rio), Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do conselho editorial do Jornal Poiésis.