top of page
Buscar
  • jornalpoiesis

A cultura e a produção e o consumo dos alimentos

Atualizado: 12 de set. de 2021



Francisco Pontes de Miranda Ferreira


O conceito de cultura envolve linguagem, conhecimentos, rituais, crenças, regas, atitudes, valores sociais e comportamentos, define as visões de mundo e as atitudes diante da vida. Sua origem está no ciclo dos alimentos que vai desde a agricultura até as refeições em que os fatores naturais como água, sol e solo e os momentos das refeições são sagrados. Hábitos alimentares refletem fatores geográficos e características regionais. A cultura alimentar também está presente nas famílias e nas relações de gênero. Fato que é constituído de elementos materiais e simbólicos. A segurança alimentar, por sua vez, está diretamente relacionada com as políticas e a estrutura social. Hoje incluímos no ciclo da produção dos alimentos a industrialização e a globalização de enorme impacto em toda a humanidade contemporânea. A comida aproxima os indivíduos e acentua os aspectos humanísticos. De todas as formas, alimentar é, antes de tudo, um ato cultural (BOUTLAND, BECUT e MARINESCU, 2016).


A cultura surgiu como necessidade de sobrevivência em que uma sociedade precisa criar valores, crenças e normas sociais que giram em torno principalmente da garantia dos alimentos. A simples razão não é suficiente para a realização das etapas necessárias à sobrevivência de uma sociedade e, portanto, símbolos e emoções são criados para acompanharem os atos racionais. Quando mudanças radicais históricas ocorrem, acontecem também importantes transformações culturais.


O consumo de comida não é apenas uma necessidade biológica, envolve aspectos culturais que acompanham todas as etapas da produção. O próprio termo “cultura” é derivado do “cultivar”. O que plantamos e comemos está associado às nossas experiências e vivência coletivas. A celebração pela coleta ou a chegada da estação de se plantar determinado cultivo estão presentes nas grandes festividades. Comida não é apenas nutrição; é vida, relacionamentos e respeito à natureza e ao esforço de quem produziu a comida desde a agricultura, a caça, a pesca e o preparo final (TARR, 2016). Trata-se de uma celebração e um agradecimento ao território e aos elementos naturais necessários para o fornecimento dos alimentos. A pressa da vida urbana afastou as pessoas destes processos, fato que prejudicou a saúde, a valorização da natureza e a cultura. As cidades precisam se aproximar dos processos relacionados com a alimentação através de hortas urbanas, terraços verdes e mercados em que o consumidor tem contato direto com o produtor.


O ciclo produtivo dos alimentos cria identidades culturais e formou os primeiros rituais da humanidade. A comida é responsável por encontros e deu início à vida social nas comunidades primitivas. Várias representações e manifestações culturais surgem do ciclo alimentício. Fato que criou também a diversidade cultural. Nas manifestações artísticas como na música, pinturas e desenhos, os povos ressaltam seus hábitos relacionados com o alimento desde a agricultura, a coleta, a caça até as refeições. O ciclo dos alimentos forma uma rede de objetos e relacionamentos. O mercado, onde os alimentos são comercializados, é uma marca do início das cidades, de extrema relevância no desenvolvimento das sociedades e provocou encontros e conflitos. O poder político primitivo também tem sua origem na produção, distribuição e consumo de alimentos e a segurança alimentar está nas estratégias de qualquer governo. As religiões também dão ênfase ao ciclo dos alimentos e a comida faz parte do sagrado, das festividades e das regras religiosas. A conexão entre alimentos e religião é muito forte. Exemplo típico é o período do Ramadan para os muçulmanos – o mês de jejum em que não se consome alimentos e bebidas durante a luz do dia. Os judeus também possuem as regras da dieta Kosher. Alguns budistas são vegetarianos como doutrina contra a violência. Em algumas religiões só é permitido comer com a mão direita (SIBAL, 2018). Quando ocorre a migração ou a imigração os povos lembram suas culturas de origem, principalmente, através dos alimentos típicos. A gastronomia é um dos principais aspectos das viagens e do turismo onde o contato com as culturas locais é mais próximo.


Na produção de alimentos, que é o fator mais importante para a vida humana, a natureza é transformada. Fator de extrema importância e muito sagrado para as culturas tradicionais. A sociedade capitalista e industrial nos impõe o consumo de alimentos padronizados e aculturados. As lanchonetes e os supermercados estão acabando com a cultura tão profunda que é a produção, a transformação e o consumo de alimentos. As refeições são momentos sagrados que devem ser respeitados como ritual de agradecimento à natureza e à própria sociedade, responsável pelo trabalho que resultou na comida final.


A comida é também uma forma de comunicação e um dos processos por onde o mundo é conhecido. Quando adquirimos ou consumimos alimentos estamos realizando um ato que vai além da simples comida, que contém um sistema complexo de significados e sinais. Na sociedade atual, com as propagandas de alimentos, muitas vezes as pessoas associam a comida com uma marca e os alimentos na sociedade industrial se tornaram commodities. Na sociedade ocidental as chamadas “boas maneiras” são valorizadas na mesa e a refeição pode ser símbolo de prosperidade e riqueza. Assim um anfitrião demonstra sua riqueza para os convidados ou as pessoas exibem sua situação econômica em restaurantes caros e sofisticados. No entanto, a atitude predominante na maioria dos povos é a oferta da refeição como uma atitude de amizade, hospitalidade e consideração. A alimentação é destaque nas festividades de aniversários, casamentos e feriados (SIBAL, 2018).


Nós dependemos do território para sobreviver e para produzirmos alimentos estabelecemos uma relação com a terra. Assim desenvolvem-se as atividades agrícolas. No entanto, a sociedade urbana e industrial afastou os humanos desta consciência e necessitamos desenvolver urgentemente um retorno da importância do território e seus elementos naturais. O distanciamento entre produtores de alimentos e consumidores também é um desastre nas relações sociedade/natureza e entre as próprias pessoas. Quando se exerce apenas o processo de comprar e consumir e cozinhar se perde o contato e a consciência da origem do alimento e o valor do território, do ciclo hidrológico e da cultura agrícola. O cuidar da Terra depende diretamente da noção da importância dos fenômenos naturais e humanos presentes na produção dos alimentos.


A sobrevivência não é possível sem água e sem florestas. Isso justifica a água e a floresta serem sagrados para os povos tradicionais, enquanto que para a sociedade industrial e urbana é mercado. Só o modelo das populações tradicionais e das aldeias camponesas até hoje se apresentou como sustentável. Isso significa que teremos que urgentemente transformarmos nossos espaços e resgatar elementos e valores pré-industriais. O primeiro passo é fortalecermos todos os movimentos e redes sociais e ecológicas que apresentam alternativas mais justas e sustentáveis para o território e que estão diretamente relacionados com a produção de alimentos.


A lógica econômica afasta a diversidade cultural dos povos. Não respeita o sagrado presente nos elementos como a água, o sol, a terra e a produção e o consumo de alimentos na sua forma mais natural. A lógica do mercado é insustentável e temos que resgatar a lógica do sagrado presente nas culturas. É importante o culto aos fenômenos sagrados como a água e a comida. Esses fenômenos representam a vida. A cultura é a arte de cultivar o natural e o simbólico. A força dos elementos sagrados da natureza, cultivado pelos povos tradicionais, é tão forte que permanecem até hoje presentes nas grandes áreas metropolitanas, onde a compra e o consumo de alimentos continuam ocupando espaços privilegiados na vida urbana.



REFERÊNCIAS


BOUTAND, J.J., BECUT, A. e MARINESCU, A. Food and culture: cultural patterns and practices related to food in everyday life. In International Review of Social Science, 2016.

SIBAL, V. Food: identity of culture and religion in St. Andrews College of Arts, Science and Commerce, 2018.

TARR, A. Food and culture: from local rationality to global responsibility in Journal of Dialogue and Culture Vol. 5, 2016.


Francisco Pontes de Miranda Ferreira é Jornalista (PUC Rio) e Geógrafo (UFRJ) com mestrado em Sociologia e Antropologia (UFRJ), pós graduação em História da Arte (PUC Rio), Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do conselho editorial do Jornal Poiésis.

27 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page