- jornalpoiesis
A cidade e as serras

Geraldo Chacon
José Maria Eça de Queirós. Nasceu em 1845, em Póvoa de Varzim, estudou Direito em Coimbra. Participou das Conferências do Cassino Lisbonense, em 1871, e teve papel importante ao lado do poeta Antero de Quental. Faleceu em 1900.
Produziu uma novela, contos, hagiografia e romances. Suas principais obras são: O Crime do Padre Amaro (1875), O Primo Basílio (1878), O Mandarim (1879), A Relíquia (1887), Os Maias (1888), A Ilustre Casa de Ramires (1900), A Correspondência de Fradique Mendes (1900), A Cidade e as Serras (1901) e outros.
INTRODUÇÃO
Diversos e inúmeros trabalhos publicados sobre Eça de Queirós e suas obras demonstram a sedução que seu estilo exerce sobre os estudiosos. Também os leitores de nível médio, desinteressados pelas análises estilísticas, revelam esse mesmo encantamento. Além do retrato plástico do cenário e das personagens, com boa dose de caricatura quase sempre (basta ver a figura de Jacinto na primeira parte de A Cidade e as Serras), Eça prende seus leitores pelo seu fino senso de humor e pela sua ironia inconfundível. Essa ironia, corrosiva ganha tons mais requintados, cores mais delicadas, na última fase de sua produção extasiando-nos com as confusões do ricaço Jacinto
O romance A Cidade e as Serras pertence à última fase, caracterizada por uma ironia que se torna bem humorada. A crítica continua, mas revela um caráter otimista. Em A Cidade e as Serras, vemos a defesa da vida no campo, de que faz a apologia, e no romance A Ilustre Casa de Ramires, na melhoria de Portugal através da exploração de suas colônias na África.
SÍNTESE DO ENREDO
José Fernandes é o narrador que se encarrega de nos contar a história do protagonista, seu amigo Jacinto: "O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival."
Jacinto é um fidalgo português, apaixonado pela cultura e pela tecnologia, que, segundo ele, são o maior sinal de civilização e os únicos meios para se conseguir a felicidade. No entanto, paradoxalmente, vive em Paris bocejando, num viver luxuoso, mas repleto de tédio. Para vocês terem uma ideia aproximada disso, vou condensar aqui o capítulo V desse relato.
CAPÍTULO V
“No entanto Jacinto, desesperado com tantos desastres humilhadores – as torneiras que dessoldavam, os elevadores que emperravam, o vapor que se encolhia, a eletricidade que se sumia, decidiu valorosamente vencer as resistências finais da matéria e da força por novas e mais poderosas acumulações de mecanismos. E nessas semanas de abril, enquanto as rosas desabrochavam, a nossa agitada casa, entre aquelas quietas casas dos Campos Elísios que preguiçavam ao sol, incessantemente tremeu, envolta num pó de caliça e de empreitada, com o bruto picar de pedra, o retininte martelar de ferro.” (p.43)
Entre as novidades aparecem instrumentos exóticos como um que serve para arrancar os pés dos morangos, outro que mexe saladas freneticamente, tendo na primeira experiência realizada pelo narrador atirado vinagre aos olhos do príncipe Jacinto, que saiu aos uivos.
Além dos instrumentos, Jacinto comprava livros em quantidades excepcionais, a ponto de levar José Fernandes a ter um pesadelo terrível. Havia livros por toda parte, na cama, no piso, na rua. As caras das pessoas eram um livro e na praça da Concórdia encontrou uma pilha enorme de livros. Subiu por ela, passou da terra, das nuvens, chegando ao Paraíso, onde encontrou Deus lendo um livro de Voltaire, numa edição barata e sorrindo.
Confessa o narrador que numa dessas semanas movimentadas, conheceu uma pobre mulher de olhos negros, cabelos amarelos, morena seca, um jeito de gata negra sobre um beiral de telhado, que o deixou enfeitiçado. Confessa que amou aquela mulher com todos os amores, tanto com amor humano, como com amor bestial, assim como Romeu amou Julieta, e também como um bode ama uma cabra. Era Madame Colombe. Durante sete semanas, vai o narrador José Fernandes despejar os seus bens e dinheiros naquele regaço que se cavava entre um ventre sumido e uns joelhos agudos, parecendo pouco se incomodar com o quarto forrado de cretones sujos, com as garrafas de cerveja no mármore do lavatório ou com os cabelos que ela tinha no peito. Tanto devia ser o seu desejo que quase desfaleceu quando encontrou a porta fechada e ficou sabendo pela porteira barbuda que a madame já não morava ali, tendo partido “com outra porca”, para usar as mesmas palavras da mulher. Perambulou até tarde sofrendo, mas acabou sentindo fome e sede. Bebeu e comeu muito. Depois, ainda irado, tomou uma carruagem de aluguel e foi aos murros dentro dela para o 202. Já no quarto, numa mistura de pesadelo e bebedeira viu Madame Colombe morder seu coração, chupando-o a sorvos lentos. Chegou a inclinar-se no leito e ver sua sepultura sobre o tapete, fundindo a imagem da alucinação com um vaso de porcelana com asa, dentro do qual vomita tudo que bebeu, tudo que comeu. “Depois num esforço ultra-humano, com um rugido, sentindo que, não somente toda a entranha, mas a alma se esvaziava toda, vomitei Madame Colombe!” (p.48)
Refeito por um banho profundo, Zé Fernandes procura Jacinto e o encontra no mais profundo tédio. Zé Fernandes pergunta ao Grilo qual seria o problema de Jacinto e o criado responde que sua Excelência sofre de fartura. É julho, o calor é imenso e a poeira enfurece Jacinto, mas mesmo assim ele não consegue pensar em deixar a cidade. Quando o narrador lhe sugere ir para Fontainebleau, Montmorency ou para o campo, Jacinto tem um espanto tão grande que Zé Fernandes arrepende-se de ter falado em campo.
Comentário: Esse trecho apresenta tendência naturalista, dissecando aspectos fisiológicos animalescos e repugnantes. A terceira fase de Eça de Queirós não apresenta muito essa tendência, tanto que só no capítulo V, ela aparece, causando mesmo um estranhamento e um contraponto com o refinamento apresentado nos demais capítulos.
Certo dia, por causa do translado de uns ossos de seus antepassados, Jacinto volta a Portugal em companhia de Zé Fernandes.
Chegando ao Minho, sua província natal, apesar dos dissabores da viagem e da perda de todas as suas malas, com toda sua civilização encaixotada, o Príncipe alegra-se com os ares e a comida local. Aos poucos, aquele ambiente puro e saudável vai curando seu tédio e despertando seu interesse pela vida. Seu corpo se apruma, sua alma ganha vida nova. O casamento com Joaninha, prima do narrador, dá o toque definitivo a essa mudança. Embora Jacinto viva dizendo ao amigo que pretende levar sua família para conhecer Paris, percebemos, pelos adiamentos frequentes, que isso não acontecerá.
Quem acaba voltando é o narrador, mas se desilude com tudo, mostrando assim que Jacinto tem razão em não deixar sua terra querida, sua vida no campo. A cidade é vazia e repetitiva. Só o campo é cheio de vida e variedade.
Geraldo Chacon é poeta, membro da Academia Araruamense de Letras.