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  • Foto do escritorJornal Poiésis

A cidade como espaço de luta: a força da práxis e a questão do saneamento

Atualizado: 5 de abr. de 2021



Francisco Pontes de Miranda Ferreira*


A construção de cidades melhores envolve o desenvolvimento de um pensamento político-ideológico e de ações. Quando pensamos no sistema urbano contemporâneo, temos que relacionar o processo da industrialização que foi o motor do desenvolvimento das cidades modernas. Estamos ainda vivenciando uma sociedade industrial-urbana que já demonstra sinais de transformações. Antes da industrialização as cidades eram muito ligadas a fatores externos do campo. Eram centros políticos, artesanais e culturais que viviam em função da produção do campo. A partir do processo industrial as cidades passam a ser dominadas por interesses empresariais e cria-se uma nova divisão do trabalho e territorial. A cidade se torna principal palco das lutas de classe, das contradições entre pobreza e riqueza e dos conflitos entre dominadores e oprimidos. A cidade é a principal arena das rivalidades onde alguns vivem na extrema riqueza e outros na miséria. O processo da industrialização rompeu com toda uma ordem territorial existente e retirou o sagrado da natureza através da racionalização.

As desigualdades presentes nas territorialidades socioambientais urbanas estão bem claras quando analisamos fatores como saneamento. Na cidade temos os territórios dos dirigentes com os problemas do saneamento, pelo menos disfarçados e os espaços do proletariado onde os problemas de saneamento são evidentes. O tecido urbano é composto por um sistema de objetos e de valores, que está sempre em expansão e as comunidades mais pobres são vistas como ameaças e não recebem os serviços básicos. Nas periferias urbanas são abrigadas as vítimas do êxodo rural provocado pela industrialização. Os efeitos sociais e ambientais do processo de industrialização atingem todas as cidades, principalmente as médias e grandes. A lógica industrial é acompanhada da lógica econômica liberal e as cidades são dominadas pelos interesses empresariais. O desenvolvimento desigual provoca as desigualdades sociais tão presentes no saneamento e nas territorialidades consequentes deste processo. Assim as áreas de menor interesse para o mercado consumidor sofrem as maiores carências. Além disso, a produção industrial acontece de forma uniforme e centralizada onde há pouco espaço para as alternativas, sistemas solidários e cooperativos. O sistema industrial-urbano-capitalista é marcado pela necessidade permanente de expansão e de obtenção de lucros em que o socioambiental fica em segundo plano. O sistema industrial-urbano se interessa na manutenção de uma rede de negócios que inclui equipamentos, mineração, transporte, comércio, máquinas, mão-de-obra (LEFEBVRE, 2001). A circulação de mercadorias é a base do sistema e assim também da ocupação territorial com graves consequências socioambientais e a criação de territorialidades extremamente desiguais. Nas periferias instalam-se as áreas des-urbanizadas e carentes dos serviços básicos como saneamento. Mesmo quando se buscam soluções para a problemática do saneamento o interesse predominante é o do mercado dos lucros e do consumo. Destacamos também a concentração do capital na mão de poucas empresas e sistemas financeiros e o setor do saneamento faz parte desse processo e, apesar de ser uma necessidade básica da população, está inserido no mercado de bens e consumo. Trata-se de mais um setor da economia capitalista e algumas áreas do território são mais privilegiadas por serem de maior poder aquisitivo. Fato refletido nas territorialidades que identificamos na cidade.

No entanto, há contradições importantes. Na mesma cidade do mercado, convive a cidade da totalidade, dos ciclos e ritmos do território. Trata-se do espaço político e da reflexão, onde se reúnem as diferenças e organizam-se ações. Trata-se do espaço da linguagem que se utiliza das próprias contradições da racionalidade da sociedade industrial. A missão transformadora e emancipatória não está no mercado ou no Estado, mas surge desta própria racionalidade por iniciativa dos que sofrem as desigualdades.


É da indústria, da produção industrial, de sua relação com as forças produtivas e com o trabalho, e não mais de um juízo moral ou filosófico, que a classe operária retira suas possiblidades. É preciso virar o mundo pelo avesso; é uma outra sociedade que se realizará a função do racional e do real (LEFEBVRE, 2001: 41).


A cidade é um espaço em crise, estreitamente relacionada a fatores sociais. Assim a industrialização que representou uma forte transformação social, modificou os espaços urbanos de forma radical. Mudanças que incluem as relações diretas entre os grupos sociais e a ordem regida por poderosas instituições como as corporações empresariais e o Estado em todas as suas esferas de poder. A cidade assim produz obras, objetos, comportamentos, conhecimentos, relações sociais. O pensamento sobre o espaço urbano não pode ser fragmentado, dividido em especialidades. A realidade urbana exige uma visão totalizante, interdisciplinar e complexa. A cidade é um organismo em que ocorrem confrontos entre estratégias políticas e simbólicas. Buscamos assim a constituição da cidade como uma comunidade livre e “associada livremente para a gestão dessa comunidade” (LEFEBVRE, 2001: 47). A cidade se transforma e desenvolve tanto continuidades quanto descontinuidades em função das transformações nos modos de produção, nas relações de classe e propriedade. Lefebvre descreve a cidade como uma projeção da sociedade e afirma que ela pode ser ouvida, como uma música e lida, como uma escrita discursiva, o autor ressalta a importância das diferenças, mas, aponta, antes de tudo, a cidade com o seu papel histórico e local das revoluções. Trata-se de um livro inacabado. A política é uma forma de se retornar o sagrado presente no território, mesmo urbano. Ao contrário do uso econômico mercantil que profana o território.

As cidades estão sempre em expansão e ameaçam constantemente o campo e a vida tradicional. Assim condomínios, complexos turísticos e malhas de transporte invadem a área rural, provocando transformações marcantes. Algumas cidades ainda possuem marcas da vida rural, mais presentes nas comunidades periféricas. A grande atividade devoradora é chamada por Lefebvre de “consumo” - uma racionalidade acima da própria cidade que parece corroer tudo, o próprio espaço urbano. Tem como lógica a apropriação técnica da natureza. Existe uma tendência na direção de uma racionalidade absurda e destrutiva presente na lógica empresarial que geralmente ganha apoio estatal.

A ação política é o caminho para reverter-se essa racionalidade. A organização social urbana é composta por uma série de contratos de reciprocidade: alguns formais como o presente entre patrão e empregado e outros informais como o que existe entre centro e periferia. A tendência é o rompimento desses contratos e acontecer a segregação e a dialética dos conflitos. A racionalidade presente nas cidades é dotada de meios de pressão em que os privilegiados são os grandes comerciantes, os banqueiros e o setor industrial que adquirem um aparato ideológico e estratégico e promovem formas de segregação. Os indícios dessas segregações estão presentes nas territorialidades e em elementos como a realidade do saneamento. Nas áreas mais pobres há ausência e carência dos serviços de saneamento. A segregação leva à formação dos guetos urbanos e provoca vários tipos de degradação: territorial, social e simbólica. Estado e empresas trabalham juntos no processo de segregação e divisão territorial.

O Estado e a Empresa procuram se apoderar das funções urbanas, assumi-las e assegurá-las ao destruir a forma do urbano (...) A crise da cidade, cujas condições e modalidades são pouco a pouco descobertas, não deixa de se fazer acompanhar por uma crise das instituições na escala da cidade, da jurisdição e da administração urbanas” (LEFEBVRE, 2001: 99).


A cidade, possui, portanto, uma racionalidade gerida pelo mercado e sistemas de vigilância e controle. Trata-se de um racionalismo arbitrário e segregado, baseado no consumismo em que os que vivem na carência e na pobreza, na não-participação política vão ter que desenvolver uma nova práxis, integrativa e alternativa. Assim grupos sociais das periferias se organizam para construírem ações emancipatórias. Busca-se assim o caminho da autogestão como reação contra as poderosas forças que dominam a cidade.


Para a classe operária, vítima da segregação, expulsa da cidade tradicional, privada da vida urbana atual ou possível, apresenta-se um problema prático, portanto, político (LEFEBVRE, 2001: 104).


As comunidades podem e devem participar de conselhos, exercer diversas formas de reivindicações, lançarem seus candidatos. Mas, os projetos emancipatórios acontecem quando a periferia se organiza em torno de projetos práticos independentes do sistema. Assim na área do saneamento, por exemplo, organizam cooperativas de coleta e reciclagem de resíduos, constroem biossistemas para resolverem o problema do esgoto, buscam água nas minas próximas, organizam hortas comunitárias, desenvolvem a agroecologia e constroem ecovilas, desenvolvem empresas cooperativas e solidárias e comunas anarquistas. Através de práxis alternativas e independentes buscam-se respostas ao sistema que por princípio serve aos interesses empresariais, com apoio do Estado. Emancipação acontece no desenvolvimento de práxis que, entretanto, precisam estar preparadas para serem reprimidas através de ataques diretos e simbólicos. Nos conselhos e nos meios jurídicos a periferia cria instrumentos importantes de resistência, mas só a implantação real de alternativas nas formas técnicas e gerenciais vai ser caminho emancipatório. A periferia não pode esperar nada da elite ou do Estado e assim acontece no setor do saneamento em que a falta de água, o esgoto sem tratamento e a céu aberto, o lixo espalhado, a drenagem colocando a população em risco, as doenças de origem hídrica vão estar sempre presentes nas áreas mais pobres e os projetos empresariais, apoiados pelo Estado, não vão nunca atender por completo as carências destas periferias. As necessidades emancipatórias da classe oprimida exigem a aventura e o enfrentamento onde o resultado das ações será imprevisível. A comunicação, a percepção da realidade e a organização política são os primeiros passos para a construção de uma utopia experimental. A planificação social deve prevalecer sobre a econômica em que tenhamos uma realidade urbana destinada aos usuários e não aos especuladores e técnicos convencionais.


Só o proletariado pode investir sua atividade social e política na realização da sociedade urbana. Só ele também pode renovar o sentido da atividade produtora e criadora e destruir a ideologia do consumo. Ele tem, portanto, a capacidade de produzir um novo humanismo, diferente do velho humanismo liberal que está terminando sua existência o humanismo do homem urbano para o qual e pelo qual a cidade e sua própria vida cotidiana na cidade se tornam obra, apropriação, (valor de uso e não valor de troca) servindo-se de todos os meios da ciência, da arte, da técnica, do domínio sobre a natureza material (LEFEBVRE, 2001: 140).



Referência

LEFEBVRE, H. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

Francisco Pontes de Miranda Ferreira é Jornalista (PUC Rio) e Geógrafo (UFRJ) com mestrado em Sociologia e Antropologia (UFRJ), pós graduação em História da Arte (PUC Rio), Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do conselho editorial do Jornal Poiésis. É diretor da Arcalama Serviços de Comunicação (www.arcalama.com.br).




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