Jornal Poiésis
A briga entre Cuba e Itália - Crônica

Matheus Fernando*
Era para ser mais uma comum manhã de quarentena. Como tenho dormido cedo levanto às 5 A.M. Desço do avesso as escadas daqui do prédio. Bike. Padaria. Pão doce. 0,60 cents. Retorno. Banho. Café. Sentar no escritório para trabalhar um pouco antes de arrumar a casa e fazer o almoço.
Sendo que nem sempre dá para seguir essa rotina, ainda mais que a NetFlix lançou mais uma temporada de La Casa de Papel. Nessa última temporada a Nairóbi morre! Uma pena. Mas acho que acontece quando se tenta roubar a casa da moeda da Espanha...
Então já acordei tarde, desço ainda dormindo as escadas e quando vou pegar a bicicleta… eis que ouço uma gritaria danada. Aliás, mais uma gritaria! No apartamento do lado, exatamente no mesmo andar que o meu, páreo janela da sala com janela da sala, mora um casal. Um casal de duas mulheres. E por mais que no discurso rotineiro e midiático isso seja comum, no meu repertório em certa ainda é novo. Não novo de ouvir falar, até porque na UFF além de ouvir falar é a situação mais breve de se ver.
Novo que eu digo no tocante a presenciar essa dinâmica ou a essa gritaria diária, no caso. De minha parte não há julgamentos prévios. Muito pelo contrário. Acho que cada um tem direito a suas escolhas e ser responsável por elas também. Até porque como um bom estudante da Psicanálise do tio Freud eu já entendi que o desejo humano, quando falamos de inconsciente estamos falando de algo que é a-moral e de algo que se trata de por onde passam as marcas de satisfação (também sexuais) e de por onde passam os olhares que nos constituem.
Contudo, voltando à gritaria. Como todo ou quase todo recém casal que está em seu eterno período de adaptação, elas brigavam. Parece até que passavam mais tempo brigadas do que de bem. Esses momentos me trazem à memória minha infância. Quando eu e meu irmão dávamos um jeito de brigar até na hora da oração antes do almoço.
Já que eu estava ali, não custava nada parar para ouvir. Até porque eu já tinha que regar minha hortinha no pé do muro mesmo. Pelo que entendi, a situação era a seguinte: Uma das tais tinha pisado em alguma bola na relação. Logo, a outra muito chateada expressou seus sentimentos de indignação. Até aí tudo bem, sendo que o expressar de sentimentos de uma mulher é quase como abrir uma caixa de pandora, sabe? No caso do homem é só uma caixa preta mesmo, pequena e com informações essenciais e bem específicas.
Percebi então, já com informações colhidas de outras brigas - até porque eu só estou na minha sala, não tenho como calar meus ouvidos - que uma delas é sempre a mais emotiva e melancólica (aqui a chamarei de Itália), já a outra jovem é mais firme, mais rígida até consigo mesma (aqui a chamarei de Cuba).
Então após Itália se expressar e se expressar e se expressar, Cuba não aguentaria toda essa situação sem desferir uma ofensa daquelas! Foi quando a briga esquentou de verdade e então percebi que já estava molhando meus dois pés com o regador.
- Você está parecendo até aquelas mães que pedem para o menino engolir o choro depois se expressar!!!
- Mas você está fazendo tempestade num copo d’água, meu amor …
- NÃO ME CHAMA DE MEU AMOR. E Itália bate uma porta com tanta força que a maçaneta do lado de fora cai no chão!
Esse é aquele momento que eu já queria ter comprado o pão doce. A água do regador a essa altura já tinha acabado. A fome da última madrugada me consumia mas estava apenas podando uns qüento chinês mesmo, nada intencional.
- Mas eu só quero fazer as pazes, Itália.
- CUBA, Você ainda não percebeu que a última coisa que eu quero é olhar para tua cara agora?
- ITÁLIA, ABRA ESSA PORTA AGORA. E uma bateção na porta começa nesse momento.
Eu não podia intervir, apenas ouvir nesse momento. Todavia, a minha vontade era falar para Cuba esperar a poeira baixar para no final do dia quem sabe, com um jantar prontinho, quem sabe um pedido de perdão! Gente, não é possível que as pessoas não consigam entender e respeitar o tempo e o espaço do outro dentro do relacionamento.
- CUBA, VOCÊ QUER QUE EU VÁ EMBORA ?
E um silêncio mórbido se estende ao som dos poucos passarinhos que acordaram atrasados hoje. Nenhuma outra batida na porta, nenhuma outra palavra, apenas o som baixinho de um choro tímido… bom, horta regada e limpa.
*Matheus Fernando é aluno de graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. É escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo.